
Bottles Club
Elis acordava afinada. Não importava a hora em que fôssemos dormir, o que tínhamos feito na véspera, festa ou não, ela acordava afinada.
Cantarolava no banheiro e seguia pela casa sem perder uma nota sequer. Morávamos no São Conrado, na ladeira da Niemeyer, no Rio de Janeiro. Era um condomínio de casas que tinha sido construído por um arquiteto chamado Fernando. Como ele era português, o condomínio era conhecido como o do Fernando português. Era o endereço que dávamos e nossa casa era a primeira, de frente para aquele mar enorme do Rio, no alto da ladeira.
Tínhamos um terraço na frente da casa e era ali que tudo acontecia. De manhã com sol, sem vento ou chuva, tomávamos o café da manhã ali, depois esticávamos os colchões e tomávamos sol, depois o jantar e juntávamos ali a moçada da música.
O piano, de um quarto de cauda, ficava na porta que dava para o terraço, era só abrir aquela porta e ele estava ali, parte do cenário. Tínhamos dois empregados ─ uma mulata bem bonita chamada Teresa e o Genivaldo, do Recife, baixo e forte, especialista em fazer caipirinhas. Naquela época só se tomava caipirinha de limão, ninguém sonhava em fazer caipirinha de outras frutas, era heresia. Foi aí que Genivaldo começou, fazia de qualquer fruta: laranja, morango, maçã e até de banana, que era horrível.
Genivaldo era mais cenógrafo que empregado, o de que ele gostava mesmo era do terraço. Era ele quem de manhã transformava aquele espaço em lugar de festa. Sozinho carregava a mesa do café da manhã, que era de ferro branco com umas cadeirinhas superincômodas, mas bonitinhas, e Elis adorava aquele conjunto. Assim, como o café era sempre rápido, eu nem reclamava. Tudo pela beleza.
Depois ele transformava o terraço em solário, tínhamos uns colchões enormes, fofos, que substituíam as cadeiras e eram muito mais confortáveis. Ali tomávamos sol, fazíamos amor sob o olhar complacente de Teresa que ainda tomava conta de Genivaldo para ele não espiar. Aquele era um direito de Teresa, só ela podia testemunhar nosso amor.
De noite Genivaldo criava o seu cenário favorito, trazia um bar para o terraço, espalhava três mesinhas de bar com umas cadeiras superconfortáveis. Afinal, as noites eram sempre longas e o conforto, indispensável.
Aí começava a chegar o pessoal. Elizete vinha cedo, morava ali perto e vinha atrás da caipirinha e de um papo antes de dormir. O poetinha chegava depois e dizia que tinha vindo por minha causa, não era para visitar a Elis, mas para checar o amigo. Levantava a minha moral e me olhava com aquele olhar de quem dizia: “tô com crédito, quando eu precisar tu tem que me socorrer”. E ele sabia que eu estaria lá. Quantas vezes eu acalentara o choro da mulher que ele abandonava por um novo amor, houve duas que eu herdei, de papel passado e tudo, ele transferiu a mulher para mim garantindo que eu faria amor para ela, não iria falhar no ato sexual e ainda iria escrever uma poesia ou outra, ele até ia corrigir, mas com uma cláusula de garantia ─ eu tinha que ficar seis meses totalmente apaixonado por elas.
Acabou dando certo e foram duas heranças bem vividas. Uma teve até comemoração em conjunto e fotografia do Antonio Guerreiro que adorava esse ar de suruba. Havia dias em que chegava o maestro, com aquele ar de menino, aquele sorriso de quem conhecia o Frank Sinatra e aquele jeito que parecia que ele estava sempre mastigando. O maestro só não era mineiro por acaso. Tinha todo o feitio e andar das Minas Gerais.
Chegavam depois o Chico, o Edu, o Ivan, a Nara, a Danusa, o Francis, a Vanda e tantos outros. Genivaldo era a vedete. Suas caipirinhas eram famosas, ele até inventava uns verdes para colocar no copo, dizia que era folha de mexerica, para nós era mato mesmo.
O primeiro a se sentar no piano era sempre o Francis, estudara piano clássico na Áustria, seu pai Luis Antonio Walter Hime era dono da Siderúrgica Hime, a maior do Brasil; como dizia Fernanda Montenegro, era o único milionário do grupo e naquela época ser milionário valia a pena.
O Toquinho chegava mais tarde, meio tímido agarrava o violão e ai mudava tudo. A Elizete reclamava da hora e dizia que tinha de dormir cedo, pois já era uma senhora. O Ciro Monteiro dizia então: ─ Não é só uma senhora, é uma puta senhora e ninguém se atreva a confundir com uma senhora puta, senão tem que se ver comigo.
Com isso se iniciava uma briga, a nossa lady da música detestava palavrões e avançava para Ciro dizendo que não entendia como com aquela voz rouca, falta de educação e mau gosto em se vestir, ele conseguia vender discos. O maestro então assumia os trabalhos, fazia as pazes entre os presentes e Elizete ia embora com ar de dama feliz.
Naquela época, no Rio de Janeiro existia um lugar em Copacabana chamado Beco das Garrafas. Era uma rua sem saída, onde não entravam carros, cercada de edifícios dos dois lados. Naquele beco havia quatro pequenas boites, era o nome que se dava para bares fechados com música, ainda não existiam as discotecas, nem se pensava em casas gigantes. A vida noturna era feita de bares e boites, espalhadas por Copacabana e umas poucas em Ipanema que começava a nascer.
O beco se chamava das garrafas porque quando a turma que frequentava os bares começava a fazer muito barulho os moradores jogavam garrafas. Era guerrilha urbana, a garrafa quando caía fazia um barulhão. Sobravam cacos para todo o lado, mas isso é que transformava o beco num lugar único.
O Bottles era o último lugar do beco, encostado no muro, com pequeno toldo preto. Lá dentro um belo piano de cauda inteira e 42 mesinhas. Todo o domingo acontecia uma Jam Session, músicos amadores e profissionais se misturavam tocando jazz moderno e tradicional. Grandes nomes apareceram ali, naquelas sessões de domingo foi revelado o Sergio Mendes, um garoto de Niterói que tocava um piano fabuloso, o Arakem, que era irmão do Cauby Peixoto e tocava Sax, o DoUmm, que iria se transformar no maior baterista do mundo, o Nego Balanço que era um ritmista fabuloso, enfim o programa de domingo era obrigatório, tinha de ser no Bottles.
Uma noite, o Luca, que era o dono do Bottles, chegou à nossa reunião do Terraço. Entre caipirinhas e música trouxe a triste noticia, ia ter que fechar a casa. Não estava dando, ainda agora aumentara o aluguel e precisava colocar um toldo maior de alumínio para proteger os clientes das garrafadas.
Em meio à consternação geral decidimos fazer alguma coisa. Marcamos uma reunião para o outro dia, convocamos todo mundo, até os irmãos Castro Neves. Eram trigêmeos, o Oscar, um dos maiores músicos do Brasil, que depois iria se mudar para Los Angeles e nunca mais voltar, até hoje o melhor arranjador de bossa nova que já tivemos. Os outros eram Ico, um arquiteto que tinha feito o primeiro motel elegante do Rio, chamava-se Motel Havaí e tínhamos entrada gratuita a qualquer hora, e o Zeca, que não fazia nada, nunca trabalhara, mas segundo o folclore local era a pessoa que conhecia todo o mundo. Você falava em Pelé e ele dizia: ─ Íntimo, ainda ontem ficamos uma hora no telefone.
O Emerson, e ele respondia: ─ Me convidou para ir para Londres com ele, mas não sei se vou, ele é meio pegajoso.
E por aí continuavam suas histórias. Dizem até que aquela velha piada do papa na realidade foi uma história que aconteceu com o Zeca. Para quem não conhece vamos lá. O nosso maior playboy e ídolo no que se refere à conquista de mulheres era Baby Pignatari. Digno herdeiro das tradições de Rubirosa e Jorginho Guinle, Baby só namorava estrelas, estrelas de Hollywood, estrelas francesas e italianas. Herdara uma enorme fortuna e dizia que gastar dinheiro atrás de mulher bonita é uma benção e
que só homens de bom gosto entendem isso. E eram anéis do Cartier, colares do Bulgari, e até umas coisinhas do H. Stern. Quem não gostava dele, dizia quando ele chegava: ─ Olha, o Baby chegou, não vai ter mais nenhuma puta pobre no lugar.
Mas o fato é que ele tinha classe, elegância, fumava de piteira, piteira para charuto, um arraso! Pois foi com o Baby que aconteceu o caso. Ele dizia que o Zeca era um falador e um dia fez a aposta temerária. Avisou ao Zeca que estava indo para Roma e queria visitar o papa. O Zeca disse imediatamente: ─ Conheço o papa.
E assim Baby lançou o desafio: ─ Te levo pra Roma. Se você conhecer o Papa te dou mesada o resto da vida, se não te deixo lá, sem passagem de volta e sem dinheiro.
Lá foram os dois para Roma, não existia ainda celular, nem e-mail, não se revistava ninguém no aeroporto e o terrorismo era uma piada. Nós que ficamos começamos a nos preocupar. O que fazer, iam largar o Zeca sozinho e já o imaginávamos pedindo esmola na porta do Vaticano e tudo. Pensamos até em organizar uma vaquinha para comprar a passagem de volta. Mas era complicado porque na realidade tínhamos que
comprar três passagens. Uma ida e volta para quem fosse atrás do futuro mendigo de Roma e outra de volta para ele. Não dava.
Aguardamos ansiosos as noticias e uma noite chegou o telefonema tão esperado. Baby estava meio rouco, até gaguejou, o que para um playboy é pecado capital, playboy não gagueja, playboy sabe tudo.
Aí ele falou: ─ É, o homem é fogo.
Nós ansiosos perguntávamos:
─ Como foi?
─ Chegamos à praça do Vaticano, cheia de gente e Zeca me disse: “Está vendo aquela janela à direita, a segunda depois do enfeite”? Ali é que ele vai aparecer, me espera um instante aqui e não deixa de olhar para lá.
Assim Zeca sumiu e quinze minutos depois, debaixo de palmas da multidão, aparecem na janela o Papa e Zeca do seu lado. Atordoado, Baby pergunta a uma pessoa próxima.
─ Quem é aquele ali?
O estranho responde.
─ Aquele padre todo enfeitado eu não sei quem é, mas ao lado dele é o Zeca.
E assim Zeca conseguiu sua pensão para toda a vida, e nunca mais duvidamos de suas histórias.
A reunião começou, todos falavam ao mesmo tempo, e demorou um pouco até chegar a hora das decisões. Finalmente elaboramos um plano. Iríamos fazer todos uma temporada para levantar o lugar. Shows quatro vezes por semana com os grandes nomes da Bossa. Nos revezaríamos nos instrumentos, eu ficava com o piano e o Arakem com os metais, o DoUm na bateria - ele também dali a seis meses partiria para Los Angeles para nunca mais voltar - o Nego no ritmo, o Oscar no violão e até se conseguiu um cello para melhorar os graves.
Nessa época tínhamos três grandes jornais: o JB, O Globo e a Última Hora. Este último era do Samuel Wainer e ele era casado com a Danusa Leão. Assim conseguimos uma campanha de páginas inteiras para anunciar o mês da Bossa no Bottles Club. O Sergio Porto, conhecido como Stanislau Ponte Preta, autor das Cariocas que hoje virou série de TV na Globo, ia escrever os anúncios.
O Mauricio Toscano, um italiano que vivia no apartamento do Francis Hime e era desenhista, ia fazer os layouts. Faltava alguém para promover os espetáculos. Naquela época não existia a figura do promoter. O que hoje é comum - só dá promoter, corretor e desenhista de interiores – naqueles tempos era raridade.
Foi aí que decidimos: o Zeca, ele conhece todo o mundo. Com autorização do Baby usamos seu assalariado para ser o grande promoter do projeto.
Depois de muita matemática chegamos ao valor de 23,86% da receita da noite para os músicos e para quem fizesse o show, o restante era para salvar o Bottles. Decidimos também iniciar com artistas que estavam começando, deixaríamos os grandes nomes para o meio e fim da temporada, quando já tivéssemos um público mais acostumado com o lugar e a promoção mais adiantada.
Resolvemos iniciar com Nara Leão e Chico Buarque, os dois estavam despontando, tinham ganhado um festival e assim seriam o ideal para a grande abertura do mês da Bossa. Acabei ficando com o piano. O Sergio Mendes fazia barulho demais e o Chico e a Nara queriam um som mais intimista. Chico e Oscar no violão, Arakem no sax, DoUm na bateria, o Nego nos címbalos e o Jorginho no baixo.
As meninas conhecidas, namoradas, amantes de última hora, enfim todas as mulheres disponíveis partiram para limpar e decorar o lugar. Toquinho tinha uma namorada que era dona de uma loja de flores, e acabamos com o estoque dela enfeitando as mesas. Cada mulher que chegasse receberia uma flor. Enfim tudo pronto.
Só faltava o público. Chamamos o Zeca e perguntamos: ─ Vai ter público? Falaste com todo o mundo?
Gordo e bonachão, ele respondia: ─ Fiquem calmos, só usei 9% do meu caderninho, basta para a primeira noite.
Marcamos o show para as onze horas, era um horário elegante e pegávamos a turma depois do jantar. Os boêmios começavam a noite sempre às onze horas.
Às dez e meia não havia viva alma. Chico, nervoso, fumava um atrás do outro, Araquém andava sem parar e gente que é bom, ninguém. Às onze ouviu-se aquela barulhada, Luca vem correndo e diz: ─ Tem mais de cinquenta pessoas aí fora, só que eles vieram para ouvir o Zeca tocar e quando disse que ele não tocava eles querem ir embora.
Eu falei: ─ Mas tem Chico, Nara!
Ai chamei o Luca, o Araquém e o Zeca e disse.
─ Luca, vai lá fora e diz que o Zeca, a pedido deles, vai tocar esta noite.
─ Mas como! - disse o Zeca, - Não toco nada, nem aquilo, de tão nervoso que estou.
─ Não precisa tocar. Araquém, empresta a ele um Sax e tu, Zeca, fica na frente do piano, vamos botar a luz em cima e você finge que está tocando. O Araquém te cutuca para começar e aí você vai fingindo.
O público começou a entrar, lotou o espaço, tinha até gente em pé e o grande artista da noite não foi o Chico, nem a Nara, mas o Zeca Castro Neves, que nunca tinha tocado uma nota na sua vida.
Nós salvamos o Bottles e até hoje foi aquele o único concerto do gordo Zeca. Que Chico, que nada! A noite foi do Zeca.
Em memória do grande amigo Zeca Castro Neves, que morreu atropelado saltando do táxi pela porta errada, a do trânsito.
Até na sua morte foi original! Saravá!